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Os Barbadianos em Mad Maria: Exemplo da figuração duma personagem coletiva no Novo Romance Histórico

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Academic year: 2022

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Os Barbadianos em Mad Maria

Exemplo da figuração duma personagem coletiva no Novo Romance Histórico

Marlon Görnert

Romanska och klassiska institutionen Examensarbete 15 hp /Degree 15 HE credits Portugisiska kandidat

Kurs- eller utbildningsprogram (Portugisiska IV - 30 hp) /Portuguese IV (30 credits)

Vårterminen/Spring term 2020

Handledare/Supervisor: Mauro Cavaliere

English title: The Barbadians of Mad Maria – a case study of the depiction of a collective character in the New Historical Novel

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Os Barbadianos em Mad Maria

Exemplo da figuração duma personagem coletiva no Novo Romance Histórico

Marlon Görnert

Abstrato

A descrição dum subgénero dentro da ficção histórica que se distinguiu pela sua distanciação do Romance Histórico Tradicional em vários aspetos, o chamado Novo Romance Histórico, ocupou muitos estudiosos nas últimas décadas. Mais recentemente, o catedrático português Carlos Reis realçou a importância da personagem como categoria narrativa na literatura, opondo-se às tendências estruturalistas que marcam os estudos literários modernos. Na nossa pesquisa, rastreamos o processo da figuração duma personagem coletiva no romance Mad Maria do escritor brasileiro Márcio Souza:

os trabalhadores barbadianos. Por um lado, observamos como o autor usou dados historiográficos para a figuração duma personagem coletiva baseada num grupo de trabalhadores caribenhos, cuja

participação nas obras da ferrovia Madeira-Mamoré no início do século passado é bem documentada.

Pelo outro lado, consideramos a relevância desta personagem em relação à ideologia do escritor, posto que uma das características fundamentais do Novo Romance Histórico é a narração do passado histórico através de personagens pertencentes a grupos marginais, cuja voz não faz parte do discurso historiográfico tradicional.

La descripción de un subgénero de la ficción histórica, el cual se destaca por alejarse en varios

aspectos de la Novela Histórica Tradicional, a saber, la llamada Nueva Novela Histórica, ha ocupado a muchos estudiosos en las últimas décadas. Más recientemente, el catedrático portugués Carlos Reis realzó la importancia del personaje como categoría narrativa en la literatura, en oposición a las tendencias estructuralistas que marcan los estudios literarios modernos. En nuestras investigaciones, vamos rastreando el proceso de figuración de un personaje colectivo en la novela Mad Maria del escritor brasileño Márcio Souza: los trabajadores barbadenses. Por un lado, observamos como el autor empleó datos biográficos para la figuración de un personaje colectivo inspirado en un grupo de trabajadores caribeños, cuyo papel en la construcción de la vía férrea Madeira-Mamoré a principios del siglo pasado está bien documentado. Por otro lado, consideramos la relevancia de dicho personaje respecto a la ideología del escritor, habida cuenta que un rasgo diferencial de la Nueva Novela Histórica es la narración del pasado histórico por medio de personajes de proveniencia marginal, cuya voz no forma parte del discurso historiográfico tradicional.

The task of describing a subgenre of historical fiction which clearly sets itself apart in many respects from the Traditional Historical Novel, namely, the so-called New Historical Novel, has occupied a number of scholars in the past few decades. More recently, the Portuguese university professor Carlos Reis has emphasized the character's importance as a narrative category within literature, in contrast to the structuralist tendencies which characterize modern literary studies. In our research, we trace the representational process of a collective character - the Barbadian labourers - in the Brazilian author

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Márcio Souza's novel Mad Maria. First of all, we analyze the author's use of historiographical data in the depiction of a collective character based on a group of Caribbean labourers, whose role in

constructing the Madeira-Mamoré railroad early in the last century is well documented. Second of all, we consider this character's relevance to the writer's ideological profile, since one of the New

Historical Novel's distinguishing features is the narration of historical events through characters belonging to marginal groups whose voice has been excluded from traditional historiographical discourse.

Palavras-chave

Barbadianos na Amazónia, Mad Maria, Márcio Souza, Migração Caribenha, Novo Romance Histórico, literatura amazonense, teoria pós-colonial, O Caribe na literatura.

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Conteúdo

1.0 Introdução

... 1

1.2 Perguntas de pesquisa, propósito e objetivo ... 1

1.3 Corpus ... 2

1.4 Estado de arte ... 3

1.5 Método e disposição ... 4

2.0 Contextos e marco teórico

... 5

2.1 A construção da Ferrovia Madeira-Mamore e a migração barbadiana nos Estados Amazónicos Brasileiros ... 5

2.2 O Novo Romance Histórico e o Novo Historicosmo ... 6

2.3 A figuração da personagem ... 7

2.4 A personagem coletiva na ficção histórica ... 8

3.0 Análise ...

10

3.1 Os Barbadianos e os outros ... 10

3.2 Barbadianos de ascendência haitiana ... 15

4.0 Conclusões

... 20

5.0 Bibliografia

... 22

5.1 Corpus ... 22

5.2 Bibliografia secundária ... 22

5.3 Recursos eletrónicos ... 23

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1.0 Introdução

1.1 Apresentação

Muitos trabalhos académicos foram dedicados, nas últimas décadas, à descrição e delimitação dum subgénero que terminou por ser chamado o “Novo Romance Histórico”. Tem-se discutido assaz sobre o Novo Historicismo, a relação entre a literatura e a historiografia e que factores podem ter

influenciado a evolução da ficção histórica. Esse subgénero, o novo romance histórico, descrito amplamente por autoridades da disciplina como Seymour Menton e Celia Fernandez Prieto,

estabeleceu-se finalmente na terminologia da teoria da literatura. As suas particularidades com respeito ao romance histórico tradicional e à historiografia foram assunto de várias e abrangentes pesquisas literárias de diferentes agendas. Especialmente no espaço cultural latino-americano publicaram-se muitas obras que podem ser classificadas como pertencentes ao subgénero em questão.

O Romance Mad Maria, do escritor amazonense Márcio Souza, é mais um romance facilmente identificável como manifestação prática dos conceitos que a teoria atribui ao Novo Romance

Histórico. Ele contém todas as características descritas pelos estudiosos, como por exemplo a pluralidade de vozes e a diversidade étnico-social das personagens. Queremos destacar e reflexionar sobre o caso específico duma personagem em particular, um tipo de personagem que é bem típico para a ficção histórica: a personagem coletiva, e na obra presente, concretamente, os barbadianos. Existem muitos dados historiográficos sobre a migração de trabalhadores barbadianos na Amazônia. O nosso trabalho comparará esses dados com a personagem coletiva dos barbadianos e observará o processo de figuração dessa personagem-grupo, reflexionando sobre a relevância da personagem no plano

ideológico do romance.

1.2 Perguntas de pesquisa, propósito e objetivo

Trabalharemos com as seguintes perguntas de pesquisa, que nos guiarão pela análise das aparições diretas e indiretas dos barbadianos em Mad Maria:

I. Como é que o autor amazonense realizou a figuração duma personagem literária que tem como fundo histórico um grupo étnico inteiro?

II. Que dados da historiografia podemos reencontrar nessa personagem coletiva, e será que há

incongruências entre os factos históricos sobre a comunidade barbadiana na região de Porto Velho e os barbadianos de Mad Maria?

III. Será possível detetar de alguma maneira, através da figuração dos barbadianos, o posicionamento ideológico de Márcio Souza?

Investigando essas perguntas pretendemos:

(1) Contribuir para uma série de pesquisas prévias que foram realizadas sobre este segundo romance histórico ambientado na Amazónia pelo escritor Márcio Souza (já tinha estreado no ano de 1976 com o romance Galvez – Imperador do Acre) considerando também brevemente o papel do novo romance histórico na apresentação de grupos históricos marginais.

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(2) Em segundo lugar aproveitaremos a teoria sobre a figuração da personagem proposta pelo estudioso português Carlos Reis, tendo em vista a hipótese de que a figuração dessa personagem literária foi feita através duma abrangente pesquisa historiográfica.

(3) Para além disso, baseando-nos na valiosa pesquisa de Gomes (2012), que menciona a personagem dos barbadianos, entre outras, como um dos elementos que caracterizam o romance como ficção descolonizadora, examinaremos mais em detalhe se é possível entrever a ideologia descolonizadora do autor no caso específico da figuração dos barbadianos, que no texto de Gomes (2012) só são

abordados brevemente.

Assim, o nosso estudo vai completar os estudos já existentes sobre Mad Maria, servir como exemplo para o fenómeno da personagem coletiva no novo romance histórico e da manifestação da teoria pós- colonial na literatura brasileira contemporânea. Além disso, o estudo será uma demostração do processo da figuração duma personagem através de dados historiográficos, e pode ser lido para informar-se sobre a história da migração barbadiana no Porto Velho e como ela é apresentada na literatura.

1.3 Corpus

O Corpus do trabalho consta do romance “Mad Maria” de Márcio Souza (publicado em 1980 pela editora Marco Zero), e será acompanhado e contrastado pela nossa seleção de artigos académicos sobre o género do romance histórico, a personagem, a migração barbadiana na Amazónia e pesquisas publicadas sobre Mad Maria.

A edição referida é a 7ª edição e foi revista pelo autor. A capa representava em estilo de banda desenhada os trabalhadores e os enfermeiros de várias cores de pele a carregar a locomotiva, que tem traços humanizados, dando-lhe a aparência duma prostituta gorda sobre os ombros dos trabalhadores.

A locomotiva-mulher porta tem uma cartola de chaminé, e atrás dum lenço de seda que ela tem entre as pernas vê-se os contornos de dois homens ricos de cartola que estão a brindar com dois copos de champagne. Os trabalhadores claudicam pelo lodo da selva, e escorpiões, serpentes e insetos povoam a selva, ilustrada por árvores no fundo da imagem. A atitude e a situação dos trabalhadores aponta já desde a capa à condição de semi-escravo deles.

O romance ambienta-se no facto histórico da construção da famosa ferrovia Madeira-Mamoré, e a ação desenrola-se no ano de 1911. Relatam-se as aventuras de diversíssimas pessoas envolvidas, de maneira mais ou menos direta, neste massivo projeto ferrovial. O objetivo da construção desta ferrovia foi a obrigação contratual do Brasil de possibilitar à Bolívia o acesso aos rios amazónicos para

facilitar-lhe a exportação da borracha, elemento fundamental da economia boliviana da época. As várias ações da diegese transcorrem em dois espaços geográficos principais, o romance conta com a oposição de dois espaços heterogéneos tão típica para o romance histórico: por um lado, encontramo- nos na própria selva, no rio Abunã, perto da fronteira boliviana, onde o narrador omnisciente e hétero- diegético narra os conflitos fatais, os problemas, as horrorosas condições de trabalho e os

consequentes sofrimentos e adversidades vivenciados nas obras da construção no meio da selva tropical através de focalizações em trabalhadores alemães e barbadianos, num médico estado- unidense, num engenheiro inglês, num índio caripuna, e noutras personagens muito heterogéneas.

Pelo outro lado, a diegese tem lugar na capital da época, no Rio de Janeiro. Uma personagem histórica, o vigarista, empresário e milionário americano Percival Farquhar, dedica-se a intrigas políticas e económicas, manipulando assim à distância tanto o destino do projeto da construção da estrada de ferro nos pântanos da Amazónia, quanto o de todos os envolvidos. Mencionamos de passagem que

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quase todas as personagens são estrangeiras, e que há tanto personagens históricas como inventadas entre elas.

Quando referido na análise, o romance “Mad Maria” será abreviado como “MM” na referência bibliográfica.

1.4 Estado da arte

O romance Mad Maria já deu, no Brasil, assunto a algumas dissertações de mestrado e artigos publicados em revistas científicas. Com o nosso estudo intentamos completar a quantitativamente ainda modesta lista de investigações precedentes. Eis um sumário aproximativo desses trabalhos, sem qualquer pretensão à exaustividade.

Fontanele de Paula (2017) começa a sua dissertação de mestrado em Comunicação com um resumo da historiografia sobre o assunto da estrada de ferro Madeira-Mamoré, para depois resumir o romance Mad Maria e pôr-se a clássica questão crucial sobre o género: “o que é verdade em um romance baseado em um fato histórico?” (Paula, 2017: 26). No artigo fala-se na ferrovia Madeira- Mamoré em três variedades distintas: na sua versão histórica, literária e audiovisual. O objetivo da dissertação é investigar a transcodificação dessa obra literária para a sua adaptação em minissérie pela TV Globo em 2005, e “identificar as inovações na linguagem narrativa traduzida da obra literária Mad Maria para teleficção na forma da minissérie homónima. Em específico, verificar como a narrativa teleficcional manipulou e inovou no tratamento dado aos elementos históricos” (Paula, 2017: 11).

Além disso reflexiona-se sobre o livro Mad Maria como manifestação do romance histórico, analisa-se a estrutura da obra, e discute-se sobre o grau de veracidade historiográfica do romance e dos problemas específicos na obtenção e verificação de fontes historiográficas sobretudo o relacionado com a construção da ferrovia. Durante o seu estudo, Fontanele de Paula contatou direitamente Márcio Souza, entre outras coisas para averiguar como ele escolheu os dados historiográficos para alimentar o seu processo de escrita. Sobre a obra historiográfica mais conhecida dedicada à construção, o livro A ferrovia do diabo de Manoel Rodrigues Ferreira (1960), informa-se que “Márcio Souza não considera confiáveis os dados apresentados na obra de Manoel Rodrigues Ferreira, por não serem todos dados oficiais de instituições brasileiras, mas a maioria da Madeira-Mamoré Railway Company. Recorde-se ainda ter ele afirmado que estes foram queimados para esconder a tragédia humano-contábil-financeira que foi a Madeira-Mamoré.” (Paula, 2017: 42). Ele

Informou também suas fontes de inspiração para criar determinadas personagens, inclusive personalidades históricas ficcionalizadas. A pesquisa incansável, portanto, foi sua maior

ferramenta tanto para ficcionalizar a História quanto se inspirar para contar histórias (Paula, 2017:

13).

No núcleo da sua vasta pesquisa, a estudiosa apresenta, comenta e analisa os diversos procedimentos (discursivos, narrativos etc.) e técnicas (audiovisuais, estéticas etc.) que foram efetuados para a transcodificação do livro em minissérie, adicionando considerações variadas ao resultado obtido pela equipa da produção televisiva.

No artigo “relação entre ficção e história: uma leitura de Mad Maria, de Márcio Souza” de Jeciane de Paula Oliveira e Olga Maria Castrillon-Mendes faz-se um exercício de classificação genérica,

começando por relembrar-nos a história do romance histórico como género literário, e seguindo com uma enumeração das características do Novo Romance Histórico segundo as teorias de Fernando Aínsa e o já mencionado Seymour Menton, para depois identificar (e justificar) Mad Maria como

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exemplar típico do género em questão. Expõe-se uma breve apresentação do panorama político da América Latina do passado recente que pode, de alguma maneira, ter dado início à publicação da quantidade importante de romances desse tipo no âmbito latino-americano a partir de 1970 – como razões menciona-se, por exemplo, a expansão de ditaduras militares etc., que teriam levado às

proposições de passados alternativos à história oficial na ficção histórica. Chega-se à conclusão que o romance efetivamente “apresenta, em sua composição, os elementos propostos por Menton” (Oliveira

& Castrillon Mendes, 2017: 108) e que se trata, portanto, duma “releitura crítica de um episódio histórico, pois o autor não intenciona nenhum compromisso com a história oficial, mas a possibilidade de promover reflexão sobre os fatos.” (Oliveira & Castrillon Mendes, 2017). Cita-se, concretamente, a presença tanto de protagonistas históricos como fictícios, e “a distorção consciente da história por omissões, exageros ou anacronismos imbricados à metaficção ou comentários do narrador sobre o processo de criação. Nesse aspeto, destacamos a forma como o narrador constrói a personagem Percival Farquhar, colocada como uma personagem hiperbólica, que se materializa como a representação do capitalismo selvagem.” (Oliveira & Castrillon Mendes, 2017: 108).

Márcia Letícia Gomes publicou no ano 2012, justamente na cidade de Porto Velho, a sua

dissertação de mestrado em Letras, na qual analisa o romance sob a teoria pós-colonial, apoiando- se sobretudo no ensaio de Edward Said (1978). Depois dum breve resumo do Novo Historicismo, da teoria pós-colonial e historia da estrada de ferro Madeira-Mamoré na literatura afirma que

“Márcio Souza convida o leitor a repensar fatos históricos sob o ponto de vista dos colonizados”

(Gomes, 2012: 6). Como o romance dá voz a múltiplas personagens que são trabalhadores, indígenas e pobres, leva-se o leitor a conhecer a vida de personagens pobres e simples, na maioria não consideradas como brancas, que não gozam da mesma plataforma e atenção na história oficial como as famosas personagens históricas de poder político e económico de ascendência europeia e norte-americana. Diz-se que

Na história oficial havia sempre um olhar, um filtro europeizado a relatar os encontros de culturas sob seu ponto de vista; o mesmo ocorre na literatura, em que são caladas as vozes de tantos para que apenas a voz de alguns se sobressaia. Escrever contrariamente a isso é descolonizador, e é exatamente o que faz Márcio Souza ao fazer ouvir a voz dos indígenas, barbadianos, mulheres.

A obra literária em estudo permite conhecer não apenas a macro-história, aqui já relatada brevemente, mas também as micro-histórias, as histórias do cotidiano de trabalhadores e indígenas envolvidos em tão grande construção (Gomes, 2012: 3642).

1.5 Método e disposição

No capítulo seguinte exporemos o leitor brevemente a alguns contextos históricos (que serão

aprofundados na análise) e apresentaremos algumas noções teóricas. Como já existe uma abundância de textos sobre o Novo Historicismo e o desenvolvimento do Novo Romance Histórico paralelo às evoluções na discussão sobre a História e a Literatura limitar-nos-emos a um brevíssimo resumo dessa questão. Comentaremos a categoria narrativa da personagem coletiva e a sua função típica na narrativa histórica. Depois marcaremos o suporte teórico da nossa análise, que, por sua vez, começará na terceira parte do trabalho. Na análise apresentaremos e examinaremos quase todas as aparições dos barbadianos no romance, incluindo as partes com focalização na personagem barbadiana individual de Jonathan. Analisaremos essas partes, as interações dos barbadianos com as outras personagens, o seu perfil comportamental no romance e os detalhes dados sobre a história e cultura deles, comparando

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esses elementos com as informações historiográficas à nossa disposição. Comentaremos e

discutiremos eventuais divergências nessas duas representações dos barbadianos amazónicos. A partir da teoria literária de Carlos Reis formulada no seu livro “Pessoas de Livro” (2015) pretendemos rastrear o processo de figuração da personagem coletiva, aplicando a descrição metodológica descrita ao caso dos barbadianos, para perceber como Márcio Souza fez para compor e deixar atuar no seu romance uma inteira minoria étnico-cultural histórica que vivia e trabalhava na selva amazónica da época. Na segunda parte da análise, reflexionaremos acerca da manifestação da ideologia do autor na figuração dessa personagem coletiva.

Todas as citações seguirão a ortografia usada pelos respetivos autores.

2.0 Contextos e marco teórico

2.1 A Construção da Ferrovia Madeira-Mamoré e a migração barbadiana nos Estados Amazónicos Brasileiros

Eis aqui duas citações da dissertação de Gomes (2012), que nos servirão de introdução a esse capítulo:

Usar de franqueza, como fiz até aqui, torna-nos sobretudo vulneráveis. Chamo em meu favor, assim, o fato maior de que a historiografia tradicional jamais se preocupou com o drama da ferrovia Madeira-Mamoré, pelo menos no tocante a teses universitárias e trabalhos acadêmicos. As narrativas impressionantes e solitárias de Neville Craig e Manoel Rodrigues Ferreira confirmam, nesse caso, a regra (Francisco Fort Hardman apud Gomes, 2012: 14).

A história da estrada de ferro Madeira-Mamoré foi tão marcante para a história de Rondônia, e, mesmo, na história do Brasil, que, dela, derivaram obras de ficção, ainda que poucas em face da grandiosidade dos fatos, que objetivaram cantar a saga dos homens que trabalharam para a construção da Estrada de Ferro na selva (Gomes, 2012: 30).

Não será muito arriscado afirmar que o romance de Márcio Souza, e provavelmente ainda mais a minissérie da TV Globo, contribuíram de maneira importante para a difusão de pelo menos um conhecimento rudimentar entre os brasileiros sobre a história da construção da ferrovia Madeira- Mamoré. Aqui referiremos concisamente a história desse projeto monumental, e introduziremos já a questão da migração barbadiana na região amazónica do Brasil, para proporcionar um contexto histórico básico ao leitor. A história da migração barbadiana será, naturalmente, discutida e exposta muito mais detalhadamente no terceiro capítulo da nossa tese.

O chamado Ciclo da Borracha teve o seu auge entre os anos 1879-1912, e a sua origem sobretudo na segunda revolução industrial. Especialmente o nascimento da indústria automobilística em Detroit fez aumentar a demanda de borracha de maneira enorme. A grande concentração de seringueiras na zona amazónica, independentemente de territórios nacionais, e a posse de um

monopólio a respeito levou a uma comercialização da borracha nesta zona. No caso do Brasil, o centro dessa indústria florescente encontrou-se nas cidades de Belém, Manaus e Porto Velho. Essas cidades cresceram e desenvolveram-se de maneira espetacular durante o Ciclo da Borracha, e os estados do Pará, da Amazónia e da Rondônia experimentaram um boom económico importante. Os trabalhadores brasileiros, na busca de seringueiras, feriram não poucas vezes os limites territoriais, penetrando nas zonas amazónicas da Bolívia e extraindo borracha do país vizinho, que por sua parte tinha uma

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dependência económica quase completa no facto de exportar borracha para a Europa e para os Estados Unidos. O conflito fronteiriço entre a Bolívia e o Brasil que foi causado por essa situação de não- observância da fronteira por parte dos trabalhadores brasileiros nos últimos anos do século XIX é chamado a “questão do Acre”, e escalou quase em conflitos armados. Para evitar uma confrontação militar entre o Brasil e a Bolívia e perturbar dessa maneira a exportação de borracha de ambos países, firmou-se o Tratado de Petrópolis, que incluía a adquisição do atual Estado de Acre do território boliviano, e que além disso obrigava o governo brasileiro a construir uma ferrovia a partir da nova fronteira boliviana que atravessasse a selva amazónica até chegar a Mamoré, onde se pode aceder ao rio Amazonas. A ferrovia seria usada pela Bolívia depois de terminada a construção, para assim possibilitar-lhe a exportação de borracha da sua produção nacional graças ao acesso ao oceano Atlântico por meio do rio Amazonas. Por causa dos conflitos militares da Guerra do Pacífico com o Chile, a Bolívia não tinha possibilidade de aceder à costa pacífica para poder exportar a borracha, e encontrava-se isolada na sua difícil topografia andina. No ano de 1907 começou a construção dessa ferrovia sob a liderança do empresário americano Percival Farquhar. Afirma-se que até 20.000 trabalhadores de 50 países foram enviados para os lugares de trabalho, que apresentavam condições laborais horríveis e que, por doenças tropicais, conflitos violentos etc. teriam causado, dependendo da fonte, a morte de entre 6000 e 10.000 trabalhadores (Gomes, 2012: 19-29).

Entretanto, no início do século XX, as condições de vida na ilha caribenha de Barbados também não são referidas como particularmente boas. A situação no Caribe no geral era tão precária que a historiografia fala de um exodus caribenho, uma migração em massa no continente americano, para participar na economia dos países com sucesso económico da época, notavelmente Panamá e o Brasil.

Junto à construção do canal de Panamá, o projeto da estrada de ferro amazónica foi o destino mais prometedor na imaginação dos caribenhos, que pelo facto de serem na sua maioria de Barbados receberam, no Brasil, a designação genérica de “barbadianos”. Algumas fontes dizem que até 2000 barbadianos chegaram até à construção e participaram nela. Em Porto Velho foram abertas algumas lojas por barbadianos, e até hoje podem-se observar sobrenomes de ascendência barbadiana nos três estados amazónicos brasileiros (Rocha & Alleyne, 2012: 2-7)

2.2 O Novo Romance Histórico e o Novo Historicismo

Como foi demostrado no artigo de Oliveira e Castrillon-Mendes (2017), Mad Maria faz parte do género do “Novo Romance Histórico”. Este género literário seria o fruto das discussões sobre o Novo Historicismo no século passado, que questionaram o estatuto da História como ciência “exata”,

contestaram a objetividade da historiografia, afastando-a do campo das ciências empíricas e das teorias e atitudes positivistas de muitos historiadores clássicos, para aproximá-la da Literatura, visto que a História consta de discurso. Isto é, contando o discurso historiográfico conta com um narrador, sendo condicionado pela linguagem, inevitavelmente haverá no discurso alguma marca subjetiva do orador que o pronunciou, ou, como o expressa Silva Júnior:

Nesse sentido, destaca-se a Literatura, que tem participado ativamente das novas abordagens realizadas pelos historiadores, sendo cada vez mais evidente o interesse dos mesmos em utilizar recursos estilísticos e estratégias discursivas próprias das obras de ficção na montagem de seus relatos historiográficos. A proximidade entre as duas áreas não é recente, havendo momentos em que a afinidade entre ambas mostrou-se ora mais, ora menos amistosa. Neste último caso, tem-se como fato de que a História, no século XIX, era concebida como uma ciência autônoma e, acima de tudo, objetiva (Silva Júnior, 2006: 3).

Quando se chegou à conclusão de alterar a imagem que tinham a Historiografia e os seus

protagonistas de si mesmos, processo aqui por mão nossa muito simplificado e brutalmente encurtado,

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observou-se, ao mesmo tempo, também uma alteração no romance histórico, género que se apropria de acontecimentos históricos para as suas ficções, e que se distanciou cada vez mais da sua forma clássica descrita por Lukács e criada por Walter Scott. A versão oitocentista, muito fiel à historiografia vigente e oficial que a rodeia, muda nas últimas décadas do século XX ao ponto que Menton e Prieto

cunharam o termo “Novo Romance Histórico” para a ficção histórica mais moderna, definindo esse subgénero em vastos trabalhos muitas vezes citados1. A estudiosa brasileira Marilene Weinhardt, perita no género, reúne em “Ficção Histórica – teoria e crítica” (2011) seis ensaios ao tema indicado no título da coleção, e a sua própria contribuição, “Romance histórico: das origens escocesas ao Brasil finissecular”, é uma crónica, reflexão e descrição muito exaustiva do (e sobre o) género com

comentários e resumos sobre uma quantidade imensa de outros trabalhos de diversíssimos autores de diferentes épocas que discutem algum aspeto relevante para a História, a ficção histórica, a relação entre a Literatura e a História, a metaficção histórica e tudo o relacionado com isso. Os estudos resumidos e comentados abrangem os clássicos (Lukács, Bahktin, Prieto etc.) e outros mais recentes, modernos ou menos conhecidos.

Márcio Souza é um dos protagonistas desse subgénero no Brasil, e uma análise do seu primeiro romance, Galvez imperador do Acre (1976), como exemplo do novo romance histórico e da história narrada de maneira fragmentada, apresenta-se nos trabalhos de Silva Júnior (2006) e Santos (2009) – no que se refere à forma e os traços genéricos, os dois romances de Souza são muito parecidos, e os conceitos típicos para o subgénero observados pelos dois estudiosos no primeiro romance souzano aplicam-se também em Mad Maria.

2.3 A figuração da personagem

Carlos Reis, especialista da obra de Eça de Queirós e autor de numerosos estudos sobre a personagem, defende no seu livro “Pessoas de Livro – estudos sobre a personagem” (2015) a importância da personagem na literatura, que afirma ter sido pouco considerada por estudos literários modernos. Ele alega que o estruturalismo e a narratologia deixaram a personagem à parte e propõe uma revalorização da categoria da personagem, descuidada pelo estruturalismo, e escreve sobre o seu conceito da

figuração da personagem e o potencial duma existência dela fora da obra na qual ela foi figurada pela primeira vez. Na introdução do seu livro, o catedrático português Carlos Reis proclama que

este livro trata de revalorizar a fundamental categoria narrativa que aqui está em equação. Durante décadas, a personagem viveu na penumbra para que foi relegada por desenvolvimentos da teoria literária que preferiram, com maior ou menor justificação epistemológica, centrar-se noutras categorias da narrativa.

e depois afirma também que:

A análise estrutural da narrativa e da narratologia impuseram uma conceção funcional do relato e dos agentes que nele estão implicados. Falava-se então em funções e em actantes, com inerente desvalorização de leituras psicológicas (e também sociais, ideológicas etc.) daqueles agentes, ou seja, as entidades antropomórficas que fazem avançar a ação narrativa (Reis, 2015: 10-20).

No livro, Reis dedica mais que 200 páginas a essa categoria, segundo ele, negligenciada pela crítica, protagonizada pelos seguidores de Genette. Ele fala de diferentes tipos de personagens, do conceito da

1 Convidamos o leitor, para documentar-se mais sobre esses temas, a consultar a nossa bibliografia, onde encontrará as informações precisas sobre os trabalhos fundamentais de Menton e Prieto. Comentamos também que em qualquer trabalho da nossa bibliografia, pode-se encontrar algum resumo dedicado ao Novo Romance Histórico e a sua história, sem dúvidas superior ao nosso.

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figuração, da vida “independente” que uma personagem literária pode ter, sobretudo através de

transcodificações e adaptações em outras formas artísticas (e as consequências que isso pode ter para a personagem e a sua figuração, vista a mudança de público, linguagem e o meio discursivo) e muito mais. Ele comenta elementos do processo da figuração duma personagem como a descrição física (que pode apelar para conceções prévias por parte de leitor, que por sua parte contribuem para a impressão que dará a personagem ao público), da categorização (sumária) de personagens em certas tradições literárias, da particularidade dos protagonistas pelo desenvolvimento obrigatório da sua figuração ao longo da história, e o papel do narrador na seleção de traços que levarão à caracterização indireta das personagens. Reis afirma que:

A revitalização deste que chegou a ser um “campo moribundo” é devedora de uma vasta revisão conceptual que exige que a personagem seja olhada sob o signo de uma pluralidade de perspetivas e de manifestações, correspondendo às dominantes de interdisciplinaridade e de transnarratividade de que falei acima (Reis, 2015: 23).

Depois da exibição dum romance inédito e inacabado de Eça de Queirós no qual são descritas algumas pertinências pessoais de personagens por entanto ausentes, Reis usa esse trecho como exemplo prático do processo da figuração, aqui ainda em estado inicial. Sustenta que:

Do ponto de vista que me interessa, estas personagens (do esboço do Eça) estão ainda muito aquém do que poderiam ter sido, se o trabalho de escrita tivesse ido além desta fase, o que não parece ter acontecido; e contudo, mesmo como figuras algo estáticas e neste momento inicial, elas evidenciam já propriedades de figuração que desde logo apontam para a sua condição de unidades discretas e individualizadas. É essa condição que permite a especificação de elementos de

diferenciação em que se percebem componentes de ordem psicológica, social e cultural, bem como potencialidades acionais (a desenvolver numa eventual intriga romanesca), que dão às personagens o impulso para atravessarem as fronteiras da ficção. Noutros termos: elas significam alguma coisa para o leitor, porque a figuração impõe a dinâmica transficcional que leva a reconhecer aqueles componentes psicossociais como fazendo parte do mundo do leitor, ou seja, o da sociedade oitocentista em que ele vive ou que ele, já longe desse tempo, reconhece (Reis, 2013: 29).

A figuração da personagem efetua-se através da descrição dos seus gestos, do entorno, do aspeto físico, pelo que ela diz e pelo que é dito sobre ela por outras personagens, pelas suas interações e diálogos na diegese, as considerações do narrador a respeito dela etc. Na parte analítica da nossa tese, investigaremos a figuração dos barbadianos, sempre a considerar as reflexões, os exemplos e os estudos do catedrático português.

2.4 A personagem coletiva na ficção histórica

A personagem coletiva define-se como um grupo de indivíduos (cujo número exato muitas vezes não é indicado) que agem na ação duma diegese como se fossem uma entidade só. Em dicionários de

literatura, define-se este tipo de personagem simplesmente como “personaje formado por vários, propio del protagonismo múltiple” (Platas Tasende, 2004). O narrador costuma referir-se a eles com o nome do grupo identitário ao qual pertencem, grupo que segundo a intenção e o parecer do autor terá alguma relevância para a história contada. A personagem coletiva faz parte do conceito literário do unanimismo, cuja definição no dicionário de Platas Tasende é a seguinte:

Concepto que arranca, para la literatura, de las teorías sociales de los siglos XIX y XX, y que presenta a los hombres como un conjunto, un grupo, un todo único en oposición franca al individualismo y a la angustia que el ser solo padece. Se considera unánime lo que, siendo múltiple, funciona como un alma sola (une âme) (Platas Tasende, 2004: 862).

(13)

A personagem coletiva é um elemento fundamental na ficção histórica: “este traço genérico está presente em (quase?) todos os romances históricos e é suscetível de diferentes formas de tratamento não só em períodos literários diferentes, mas também em autores diferentes pertencentes ao mesmo período literário e até mesmo pelo mesmo autor em diferentes obras” (Cavaliere, 2002: 197). Os indivíduos podem ser associados (e, assim, apagados como entidades individuais) a um determinado grupo por diferentes critérios: é pensável ter uma personagem coletiva que consta de padeiros, velhos, cegos ou misantropos. No caso do romance histórico, porém, trata-se das categorias unificadoras de nacionalidades e agrupações sociais e étnicas. Devido à não-individualização própria do conceito do unanimismo, o protagonismo coletivo “rehúye la profundización en la psicología de los personajes, a los que se prefiere captar por medio de sus palabras y de su conducta, más que de su pensamiento”

(Platas Tasende, 2004: definição de protagonista). Assim vê-se afetado o processo da figuração, já que lhe são propostos menos “ferramentas” para figurar a personagem – movimentos narrativos como a focalização interna é muito menos frequente neste tipo de personagem do que em personagens individuais.

Em Mad Maria, a personagem coletiva que nos interessa na nossa tese são os barbadianos, que no seu conjunto são uma personagem coletiva histórica, já que “a personagem histórica se pode considerar como tal porque já estão presentes no discurso histórico antes de aparecer numa obra de ficção.” (Cavaliere, 2002: 169). Como vimos, houve efetivamente um número importante de trabalhadores que migraram do Caribe para a Amazónia para trabalhar na construção da ferrovia Madeira-Mamoré, e que foram chamados de “barbadianos”, pois a grande maioria deles vinha de Barbados. Enquanto a função da personagem coletiva nos romances naturalistas e realistas é principalmente a representação do “papel” e da natureza de um determinado grupo social numa sociedade qualquer, designando a personagem coletiva nesse género geralmente com o termo personagem-tipo (Reis, 2015: 17), a função tradicional da personagem coletiva no romance histórico concentra-se na confrontação e na oposição, no conflito de interesses.

No caso de Mad Maria, os oponentes dos barbadianos são sobretudo os trabalhadores alemães, e em menor grau as autoridades da construção. No fim do romance, os barbadianos tornam-se os

oponentes (e humilhadores) dos hindus recém-chegados. O papel tradicional da personagem coletiva no género histórico é justamente este tipo de confrontações entre dois ou mais partidos. É também o caso de Mad Maria de o “episódio bélico ter um carácter mais organizado, os protagonistas pertencem também a uma classe oprimida, nomeadamente um grupo étnico subalterno” (Cavaliere, 2002: 195).

A presença de personagens coletivas históricas na ação é fundamental para ilustrar bem como eram as dinâmicas no acontecimento histórico tratado, e como Márcio Souza comunicou várias vezes a sua ambição pedagógica2, reconhecendo que quer ensinar a História aos seus leitores, o facto de deixar atuar personagens coletivas proporciona uma visão multifacetada da realidade da construção na época.

Deixar atuar personagens históricas individuais pertencentes aos diferentes grupos em questão teria tido um efeito muito menos genérico e abrangente sobre a história e a posição na hierarquia local do grupo em si ao qual a personagem pertence – a focalização numa personagem individual leva, logicamente, a uma caracterização muito mais detalhada dum individuo só, o que não serve na ilustração de oposições com adjuvantes e oponentes.

3.0 Análise

3.1 Os Barbadianos e os outros

2 Compare por exemplo a participação de Márcio Souza no programa “Roda Viva” no dia 28 de Julho de 1997

(14)

Na dissertação Ingleses Pretos, Barbadianos Negros, Brasileiros Morenos? Identidades e Memórias de Lima (2006), a figuração dos barbadianos por Márcio Souza descreve-se como segue:

Quanto aos barbadianos, de forma mais específica, a literatura que procura dar conta da história da EFMM, corrobora determinadas imagens/ideias sobre sua diferença, lingüística, racial, religiosa, às vezes como negros estranhos, violentos, e como um contraponto a outros

trabalhadores com os quais são contrastados racial e culturalmente, como é o caso dos alemães;

imagens que, difundidas de longa data, alcançaram recentemente o grande público com a apresentação da minissérie Mad Maria (Lima, 2006: 19).

A primeira vez que um barbadiano entra na ação no romance é no início do primeiro livro3. Nessa cena, na qual se introduzem os barbadianos na ação, há dois elementos atípicos no que diz respeito ao resto das aparições dos barbadianos e da figuração deles no romance. A primeira atipicidade é um barbadiano anónimo ser individualizado e distinguido da multidão dos barbadianos, que ao longo do romance será a norma, com poucas exceções, para as cenas nas quais participam os trabalhadores caribenhos. A segunda é esse barbadiano se encontrar numa atitude submissa, sem qualquer sinal do orgulho e da compostura firme que no resto do romance vai ser uma das propriedades principais da personagem à qual esse barbadiano pertence, como veremos nessa análise. Vista a circunstância, que é a fase terminal duma infeção de malária, justifica-se a atitude do barbadiano atípico nesta primeira entrada em cena duma personagem caribenha:

Logo outros viriam se juntar ao negro barbadiano, inteiramente debilitado, respiração fraca, queimando de febre, que estava agonizando desde a tarde anterior (MM: 13).

A segunda entrada em cena já é mais representativa para a personagem coletiva barbadiana:

Collier pode ver um grupo de nove barbadianos carregando um trilho […] Os barbadianos já estão bastante suados, as peles negras brilham e eles vão chapinhando na água que lhes atinge os joelhos […] O sol agora arde sobre a pele negra dos trabalhadores barbadianos, mas eles procuram ficar protegidos, vestem roupas fechadas e calças compridas, embora este não pareça o traje adequado para trabalhar a trinta e dois graus centígrados (MM: 17).

Os barbadianos aparecem na sua coletividade, a trabalhar duramente, e com a menção das primeiras características físicas começa, sob o olhar do engenheiro Collier, a figuração da personagem “os barbadianos”. Haverá mais algumas cenas com barbadianos individuais, mas consideramos as ações deles como parte da figuração da personagem coletiva completa, partindo do princípio que no caso da personagem coletiva, um barbadiano é todos os barbadianos – conceito que faz parte do termo unanimismo mencionado acima.

O nome desta personagem coletiva provém duma generalização por parte dos membros de outras origens na Construção da Ferrovia Madeira-Mamoré4, que é usado tanto no romance, como pela historiografia e os ascendentes dos trabalhadores caribenhos da CFMM, que até hoje formam uma subcultura na região de Porto Velho:

Por barbadianos ficaram conhecidos genericamente os trabalhadores caribenhos recrutados para a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Cabe aqui alertar que embora grande parte viesse de Barbados também vieram trabalhadores de Granada, Santa Lúcia, entre outras ilhas do Caribe. A predominância desses trabalhadores barbadianos ocasionou a generalização do tratamento aos naturais das demais ilhas de fala inglesa (Menezes, 2010: 70).

3 O romance é dividido em quatro livros com títulos e têm função de capítulos

4 A partir de agora abreviaremos “A Construção da Ferrovia Madeira-Mamoré” com CFMM, como já foi feito em trabalhos anteriores ao nosso.

(15)

Barbados era, na época da CFMM, uma colónia inglesa, e os seus habitantes eram ingleses de nacionalidade e identificavam-se culturalmente como tais (Rocha & Alleyne, 2012: 28). Como as colónias inglesas no Caribe, antes da abolição da escravatura, costumavam ser usadas como

“armazéns” de escravos, a população barbadiana é, na sua grande maioria, de ascendência africana.

Em Barbados, aboliu-se a escravatura no ano de 1834, e os trabalhadores que migraram para o Brasil, Panamá e outros lugares da América trabalhavam de maneira mais ou menos voluntária – as populações negras das ilhas caribenhas não dispunham duma estrutura económica para começar a trabalhar como trabalhadores livres, pois todo o sistema económico escravista das ilhas se baseava no uso dos donos brancos de escravos negros para o cultivo de produtos agrários. O súbito abandono dos antigos donos das ilhas deixou para trás uma população recém-libertada que até esse momento tinha tido um sistema completamente baseado na escravatura, o que teve efeitos económicos muito duradouros. Muitos caribenhos tiveram que emigrar, pela ausência da infraestrutura económica, para trabalhar em construções na América Central e na América do Sul – ainda no início do século passado, uns 80 anos depois da abolição (Rocha & Alleyne, 2012: 13-19).

Em Mad Maria, os barbadianos “estão no serviço de colocação do leito ferroviário” (MM: 18).

O elemento dos barbadianos trabalharem na CFMM tem uma base historiográfica bem documentada.

Muitos dos filhos e netos dos ex-escravos deixaram as suas ilhas e a situação económica penosa delas para trabalhar no Panamá e no Brasil, sem voltar jamais para os seus países natais:

The idea of somebody leaving Barbados and “disappearing” after going to Brazil was quite familiar at a time when many Barbadians were boarding ships to Brazil in pursuit of a better life between 1900 and 1930. With scant information on life in Brazil, many people sailed with dreams of a country of jungle and gold, a place to find fortune, overcome poverty and come back home for a better life (Rocha & Alleyne, 2012: 1).

Os barbadianos tinham, depois da abolição, acesso a um sistema de educação igual à Grã-Bretanha, o poder colonial que administrava a ilha, e eles receberam ótimas formações profissionais. A tradição da grande valorização de instrução escolar e profissional no Caribe anglófono é devida à posição

poderosa que ocupava a igreja protestante-anglicana nessas ilhas, que promovia o estudo e tudo o que era considerado como civilização pela coroa inglesa – suprimindo, cabe dizer, qualquer uso provindo das culturas africanas que alguns caribenhos (ainda) cultivavam (Rocha & Alleyne, 2012: 23).

Por causa da sua boa instrução, os trabalhadores barbadianos gozavam de uma reputação muito boa nas construções americanas, e eram conhecidos por prestar serviços superiores às prestações de muitos outros trabalhadores doutros países (ib.:13). Sobretudo na construção do canal do Panamá participaram muitos desses trabalhadores emigrados:

Barbados sent thousands of people to work on the Panama Canal between 1881 and 1888 – under French management – and again between 1904 and 1914, after the United States took over the project of building the Canal. Richardson estimates that 45,000 Barbadians out of a population of 200,000 migrated to Panama. It is widely believed that many of those persons re-migrated, going to Brazil – and to other countries – following the call for construction workers. By that point the ties of the Caribbean network built in foreign lands had created a different identity among those workers, as many had married partners coming from a different island, and national identity gave place to a new one, and they became known in Panama as the Caribbean people (Rocha &

Alleyne, 2012: 35).

Dos barbadianos que trabalharam na CFMM, muitos vieram da Guiana Inglesa que lhes serviu muitas vezes de entrada à América do Sul a partir da abolição da escravatura em Barbados. Uma vez

conquistado o direito de mover-se livremente, muitos caribenhos foram à Guiana Inglesa para trabalhar em plantações, já que lá se ganhava melhor do que nas ilhas. A maioria dos barbadianos migrantes era de sexo masculino (Menezes, 2010: 72). Os barbadianos que não vieram do Panamá para o Brasil entraram pela fronteira entre a Amazónia e a Guiana Inglesa.

(16)

Enquanto o número de barbadianos sob o comando de Collier em Mad Maria é 40, Hoyos estima que, no total, uns 5000 caribenhos participaram nas obras da ferrovia. Lá, eles “… joined more than 20,000 immigrants, who came from almost every part of the world, and they distinguished themselves by their superior education and their training in practical skills.” (Hoyos apud Rocha &

Alleyne, 2012: 15).

À diferença dos outros trabalhadores, porém, muitos dos barbadianos iam ficar na zona depois de terminarem as obras, já que ficaram endividados com a companhia e sem meios para voltar a Barbados, e até hoje há nos estados amazónicos várias famílias de ascendência barbadiana com sobrenomes ingleses, alguma das quais ainda falam inglês como língua nativa. Os descendentes dos trabalhadores barbadianos ainda têm uma presença cultural importante em Porto Velho, onde são conhecidos hoje em dia por uma tradição de trabalhar como professores.

O facto de os barbadianos serem negros é usado no romance como característica física principal na figuração da personagem no primeiro livro. Mais um comentário sobre o aspeto físico deles é comunicado através duma focalização em Collier:

Logo à frente de Collier vem caminhando um trabalhador barbadiano. É um homem alto e magro, olha para o céu e limpa o suor que poreja em sua pele. Os barbadianos possuem feições muito especiais, mas este carrega uma máscara purulenta (MM: 18).

Logo a seguir, tem lugar a primeira confrontação entre os barbadianos e uma outra personagem coletiva, que vai ser o antagonista dos barbadianos até o seu desaparecimento: os alemães. Na cena introduz-se também um elemento que parece ser inevitável em qualquer situação, seja histórica ou fictícia, que se desenrola no início do século XX e que envolve pessoas de cor negra e de cor branca: o racismo. A sua cor de pele condicionou a vida dos barbadianos no Brasil já desde o início:

Those strange foreigners were identified mostly because of one unexpected trace: they were Blacks. It was only about fifteen years after abolition, and they would face the same problems related to prejudice and exclusion that Blacks in Brazil did, unless they could prove themselves different from the national Blacks (Rocha & Alleyne, 2012: 67).

Quando rebenta um tumulto entre os trabalhadores, o engenheiro-chefe inglês Collier pergunta o que está a acontecer. Um dos enfermeiros responde-lhe que havia “Uma confusão danada entre os pretos e os alemães”, e afirma que “O problema é que andam roubando coisas dos alemães, eles desconfiam dos negros” (MM: 21-23). As seguidas altercações e confrontações violentas entre os barbadianos e os alemães no romance sempre são provocados pelos últimos, e parecem ter justamente preconceitos raciais como raiz – o resto dos trabalhadores enunciados como sob o comando de Collier são de países europeus e da China e não têm este tipo de problemas com os alemães:

Olha lá como eles estão nos olhando. — O alemão vira-se para os barbadianos e grita: — O que foi, macacos? —- Estão rindo de nós, de mim. Existem terras em que negro sabe o seu lugar. Eu já trabalhei na África, no Togo, numa fazenda de cacau. Em Togo um homem trabalhador podia vencer a pobreza, podia sair tranqüilo de sua terra que ali encontraria boas condições, se fosse um homem esperto (MM: 29).

Efetivamente, a situação dos negros no Brasil em geral, e particularmente num ambiente stressado e caótico como a CFMM, era longe de ser fácil na época da construção. O Brasil só tinha abolido a escravidão por completo há uns 20 anos, com a Lei Áurea no ano de 1888. Durante a época da CFMM, as ideias da ciência racial conquistavam um público cada vez maior, e a política do

“embranquecimento”, que favorecia a imigração de europeus para casarem com mulatos e branquear assim metodicamente a raça, contribuíam para um entorno social muito difícil para os barbadianos (Rocha & Alleyne, 2012: 20).

(17)

Há várias tentativas de explicação porque os barbadianos tinham um comportamento atípico para as populações negras da época, que, devido à miséria racial da época, geralmente não agiam de maneira tão segura de si quanto eles:

Especificamente falando sobre a população barbadiana, Michael Craton (1995) ao analisar a transição da escravidão no caribe britânico, observa que a população negra barbadiana tinha adquirido certo orgulho através dos conceitos trazidos pelos missionários protestantes que, já no começo da década de 1820, haviam convertido quase que a totalidade dos escravos às igrejas Metodista, Morávia ou Anglicana. A ação missionária […], para tornar os escravos mais produtivos e maleáveis, introduziu neles senso de valor pessoal e político, dando aos mesmos a consciência de possuírem aliados na Inglaterra, simpáticos à causa da libertação (Menezes, 2010:

71).

Quando os barbadianos chegaram em terras amazónicas, já havia outros negros presentes. Os barbadianos, identificando-se como ingleses e contando com boa formação, porém, consideravam-se superiores aos outros negros e ganharam a reputação, sob o olhar racista da população local, de não ser

“negros normais”. Eles mantinham-se entre si, praticavam a endogamia e distanciavam-se o mais possível de outros afrodescendentes:

Os negros caribenhos, originários das ilhas colonizadas pela Inglaterra, um território de maioria negra até os presentes dias, libertos cinqüenta anos antes dos negros brasileiros, possuíam elevados sentimentos de patriotismo com relação à coroa inglesa, mesmo trabalhando e vivendo em outro país, com família constituída em outra terra, com filhos ali nascidos, continuavam mantendo o sentimento de superioridade cultural, inclusive separando-se dos outros negros, os quais consideravam inferiores. Em Porto Velho, preservavam-se por meio da religião, da língua, dos relacionamentos de amizade e, principalmente mantendo-se unidos pela perpetuação da cultura, ao unirem-se em casamentos entre os membros das colónias. […] Apesar de o caribenho ter um grande sentimento de superioridade e de distinção com relação aos negros brasileiros, para a população brasileira que vivia em Belém, Manaus e em Porto Velho, negro era considerado negro, à primeira vista indistintos, nacionais ou estrangeiros, sendo vistos como fator de violência e problema. Os barbadianos, porém, souberam impor-se, distinguir-se através da cultura assimilada ao inglês, tão arraigada em suas convicções, o que fez com que de imediato, permanecessem imunes à ideologia racial predominante no Brasil, resultando daí que algumas famílias desses negros se mantiveram homogêneas e puras, no tocante à etnia, até o presente momento (Menezes:

2010: 7475).

Mencionaremos de passagem que nas focalizações no índio chamado Joe Caripuna, esse não distingue as nacionalidades e raças dos “civilizados”, e os classifica, segundo a cor de pele, em “brancos

civilizados” e “os civilizados de pele mais escura” (MM: 69). O distanciamento dos barbadianos de outras comunidades negras é tão notória que muitos estudos sobre a comunidade indica a questão já no título, como é o caso de estudos sociológicos e etnográficos como “Chá-das-cinco na floresta” de Nilza Menezes (1999) e “Afros e Amazônicos – estudos sobre o negro na Amazônia” de Dante Ribeiro Fonesa e Marco Antônio Domingo Teixeira (2009).

A manutenção de costumes ingleses como o chá-às-cinco no meio da floresta e a pertença à igreja anglicana contribuiu ainda mais para o isolamento deles do resto das comunidades presentes nas obras (Menezes, 2010: 74). Rocha e Alleyne (2012 : 22) sustentam que “the sources compiled on Caribbean immigrants in Rondonia and in Belém show that Caribbean workers also saw themselves as different from, even superior to, Brazilian workers, especially Black Brazilian workers”, entre outras razões porque a maioria dos brasileiros negros era analfabeta. Collier já colaborou com os barbadianos na construção do Canal de Panamá, e aprendeu a apreciá-los: “Os barbadianos são diferentes,

conhecem o trabalho que estão fazendo, são profissionais. Eu sei porque já trabalhamos juntos na Zona do Canal do Panamá” (MM: 23). Os caribenhos chegaram como especialistas com formação à Amazónia, e a personagem do rigoroso engenheiro expressa-se ao longo do livro sobretudo de maneira

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positiva, ou pelo menos relativamente respeitosa, acerca dos barbadianos. Ao longo do romance, o uso de adjetivos positivos no discurso do narrador acerca do trabalho feito por barbadianos também ilustra a competência profissional deles, por exemplo quando o narrador diz que “Collier acompanha o meticuloso trabalho dos barbadianos” (MM: 150), ou quando “Collier examina cuidadosamente o serviço e lhe parece perfeito, os barbadianos mais uma vez confirmavam seus conhecimentos em obras de ferrovias” (MM: 137) e no Livro II, com focalização no barbadiano Jonathan, narra-se que eles

não pareciam sentir fome e eram os trabalhadores mais resistentes que os brancos já tinham visto.

Em pouco tempo ficaram conhecidos e um dia veio uma comitiva de engenheiros conhecer de perto aqueles trabalhadores que não criavam problemas, não falavam e executavam o duro trabalho sem uma palavra (MM: 98).

Ao contrário dos outros trabalhadores, os barbadianos de Mad Maria parecem realmente importar-se com a qualidade do trabalho que prestam e o resultado que esse dá, o que fica evidente no primeiro teste da locomotiva sobre os novos trilhos:

Quando as nuvens de vapor se dissipam, Collier descobre que os barbadianos, por alguma espécie de zelo pouco conhecido ali, pararam de trabalhar e estão observando o teste com muita atenção. E o teste leva um ligeiro ar de contentamento aos barbadianos, um relâmpago de orgulho profissional que logo se dissipa e se distancia no mesmo ritmo com que a locomotiva anda para trás (MM:

137).

A primeira série de provocações por parte dos alemães e a reação contida dos barbadianos geram a imagem dum povo sereno, controlado e disciplinado:

quando Collier se afastou os alemães começaram a utilizar um inglês estropiado que era para os barbadianos entenderem o que eles estavam dizendo. Mas os barbadianos não pareciam nem um pouco impressionados com as bravatas deles e estavam colocando calmamente o trilho no chão. O trilho caiu com um ruído metálico e os barbadianos se afastaram dali. Um alemão mais baixo, com as calças rasgadas e um trapo envolvendo os ombros, olhos azuis aguados mas cheios de ódio, fala alto para ser ouvido. — Ninguém me tira da cabeça que não são ladrões. . . Esses negros sujos, foram eles que entraram no nosso alojamento e me roubaram — repete o alemão, as mãos apertando o cabo da picareta(MM: 28).

Os barbadianos reagem às provocações dos alemães com muita razão e calma. Quando é acusado de ter roubado uma camisa, um deles reage de maneira impassível: “— Fale em inglês, por favor — responde o barbadiano com a voz humilde mas firme. — Eu não entendo nada do que estás dizendo.”

(MM: 29).

Os barbadianos tentam nas confrontações com os alemães manter a sua serenidade em todas as cenas deste tipo do romance, mas quando a manutenção da paz se tornar impossível, eles conseguem solucionar o conflito com uma violência organizada, eficaz e controlada. O ataque do alemão de picareta acaba com a sua decapitação com um golpe nítido com o machete dum barbadiano (MM: 30).

Ou seja, os barbadianos de Mad Maria sabem defender-se quando for preciso.

Quando os alemães são substituídos por trabalhadores da Índia, porém, o orgulho e a sensação de superioridade dos barbadianos manifesta-se de maneira mais agressiva, e eles começam a desafiar e atacar os hindus como antes faziam os alemães com eles, causando novos conflitos e provocando intervenções brutais das sentinelas armadas. Isto é-lhes facilitado pelo facto que os hindus também falam inglês, pois vêm duma colónia britânica como os caribenhos. Os barbadianos também são violentos e têm preconceitos raciais (MM: 347). Segundo a historiografia, esses preconceitos raciais dirigiam-se, como vimos, sobretudo contra outros negros.

No início desse capítulo, afirmamos que a cena do barbadiano doente era atípica por ele estar numa atitude submissa. Já vimos que o primeiro conflito violento entre os barbadianos e os alemães deixa

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uma impressão diferente dos caribenhos, muito longe de qualquer submissão, e já é sabido que os barbadianos históricos não só gozavam de uma formação formidável, mas também de um forte orgulho nacional inglês e uma autoconfiança imperturbável, e que beiravam muitas vezes a se considerarem superiores no que diz respeito aos outros trabalhadores nos estados amazónicos. Em Mad Maria, os barbadianos “ficam unidos como por uma descarga de eletricidade” (MM: 30). Tanto no romance como na historiografia, é essa constante colaboração e unidade uma das características principais dos trabalhadores caribenhos. Eles têm uma identidade muito forte.

A insubordinação dos barbadianos não se limitava à questão racial e à habilidade laboral, mas também à manutenção dos usos culturais da comunidade barbadiana em Porto Velho. Já foi

mencionada a prática da endogamia e a manutenção da língua inglesa até hoje entre os descendentes dos trabalhadores barbadianos, mas a perseverança da identidade cultural dos barbadianos

manifestava-se também de outras maneiras, formando até um próprio bairro (Barbadian Town) com casas no estilo das chattel houses barbadianas. Esse bairro foi chamado pejorativamente de Alto do Bode, em alusão à língua estranha que falavam e o alegado cheiro dos seus habitantes (Rocha &

Alleyne, 2012: 15), onde se abriram negócios de diversas naturezas:

As the majority of the Caribbean immigrants went for the security of a job with the railroad company, others found occupations independently from the railroad. Some opened small hotels or bars, women were washers or started businesses selling food, men and women could also be employed as teachers within their community and later on to teach English to the children of the elite. Some scholars argue that the first schools of Porto Velho started in the Barbadian Town, during the first decade of the 20th century (Rocha & Alleyne, 2012: 24).

É dizer que os barbadianos se instalaram mais fixamente como cultura na região do que outras nacionalidades, e como não tiveram a oportunidade de sair da Rondônia, a cultura barbadiana influiu nesta zona até hoje. Este facto é considerável, pois a sobrevivência de tradições culturais nas

condições laborais famosamente horríveis da CFMM não pode ter sido sem dificuldades – pelo contrário, a totalidade do romance deixa a impressão duma barbarização na construção, como a queda do médico idealista Finnegan, que no fim do romance acaba agindo de maneira brutal como Collier.

3.2 Barbadianos de ascendência haitiana

Em Mad Maria, uma das cenas mais emblemáticas na qual os barbadianos têm um papel importante é quando Collier resolve a pancadaria entre os alemães e os barbadianos dando aos guardas a ordem de disparar, matando alguns membros de ambos grupos. O médico americano Finnegan e alguns

enfermeiros pretendem autopsiar e enterrar os cadáveres e só são impedidos pela intervenção de Collier: “Mas ouça bem, esses homens são ótimas criaturas e são os melhores trabalhadores que temos por aqui. Os únicos que realmente sabem o que estão fazendo. Eles nunca provocam encrenca, sempre se defendem. Mas que ninguém se atreva a tocar nos mortos deles” (MM: 77). Mais uma vez, Collier considera que os barbadianos são os “únicos que realmente sabem o que estão fazendo”, e é preciso respeitar os usos religiosos deles, que proibem qualquer pessoa alheia mexer nos seus mortos. É afirmado por Collier que os negros não respeitam ninguém vivo (MM: 77), mas proibem qualquer desrespeito em face aos mortos. Como veremos, os barbadianos de Mad Maria pertencem a uma parte ínfima da população de Barbados que não são membros da igreja anglicana. Os barbadianos no romance, como foi previsto e alertado por Collier, efetivamente não recuam por nenhum esforço para recuperar os cadáveres dos seus colegas disparados pelos sentinelas da companhia e entram durante a noite na enfermaria para evitar a autopsia planejada por Finnegan e um enterro efetuado pela

companhia:

Na ala dos barbadianos há uma movimentação disfarçada e fora da vista das sentinelas. Sombras se esgueiram por entre as redes, sem fazer ruído. Conversam quase sem deixar que a palavra seja

(20)

emitida dos lábios. Então, dois homens, armados de machetes e caminhando silenciosamente, escapam para a escuridão. […] Ele sente alguma coisa no ar e logo saberá porque a porta cede com brutalidade e Finnegan assusta-se com a entrada dos dois homens segurando machetes. No rosto de cada um deles há algo extremamente profundo que Finnegan não consegue detectar, algo além da sensação de perigo, um potencial de mistério que mal se esconde e é inquietante. Os dois homens apertam de tal maneira as armas que suas mãos estão sem circulação e ficaram quase brancas, de um marrom pálido e assustador, enquanto respiram compassadamente. Os dois homens

ultrapassam os biombos e deparam com os mortos […] O que é que tu fizeste com eles? — perguntou arrogante um dos barbadianos, apontando para os cadáveres […] Tu mexeste neles? — insistiu o barbadiano. — Foi só um trabalho de rotina. Nada mais poderia ser feito. Quer ver o laudo? — Para que mexer no corpo deles? — perguntou o outro com um tom de maliciosa suspeita, o que deixou Finnegan ainda mais intrigado (MM: 43).

A razão da fúria dos barbadianos de Mad Maria perante o tratamento dos mortos é a sua crença nos zombies, que é um elemento dos cultos do vodu dos barbadianos do romance. Mais tarde na diegese, uma focalização externa no barbadiano Jonathan vai, através da narração da história do seu povo, contar porque a tribo particular desses barbadianos, os chamados fons, são praticantes dessa religião haitiana. A importância que têm para os barbadianos ritos funerários fica evidente na conversa entre Finnegan e os dois barbadianos:

Um dos barbadianos empurra com violência os biombos. Finnegan sente a raiva do homem crescer enquanto os biombos estatelam ruidosamente, acordando os enfermeiros. — Não! Tu estavas profanando o corpo deles. Os brancos estão sempre profanando os mortos. […] Nós já tínhamos avisado que os nossos mortos não eram para serem tocados — disse o barbadiano, avançando ameaçadoramente e colocando Finnegan contra a parede (MM: 43).

Na historiografia, a imagem dos barbadianos é um pouco diversa nesse sentido. A religião

predominante foi o protestantismo, ainda que tenha havido pequenos grupos entre eles que seguiam crenças africanas e afro-caribenhas. Como explica Jonathan num diálogo com Collier, Barbados não é uma entidade étnico-cultural, mas uma mescla de diferentes origens e culturas. Uma das razões da distanciação dos barbadianos de outras comunidades afrodescendentes no Brasil é justamente essa identificação com a tradição religiosa inglesa, como explicamos acima:

The connection between the protestant churches and education was also linked to civilization and, together with the tight British colonial system, resulted in suffocating many of the African aspects of the Black culture in the Caribbean. At the turn of the century, the Barbadianos living in Brazilian territory were proud of their language, their religion and above all about the distance between them and the local Blacks, practitioners of candomblé, macumbas, batuques, sambas and other traditions rooted in African cultures (Rocha & Alleyne, 2012: 23).

O que pelos barbadianos foi percebido como uma superação das superstições africanas contribuiu para a sua ideia de serem superiores aos outros trabalhadores, e particularmente aos outros negros:

Ao observarmos a colónia de descendentes de caribenhos, transplantada para Porto Velho no início do século XX, percebe-se que os princípios religiosos trazidos por seus pais das ilhas foram mantidos como uma forma de superioridade pelos negros antilhanos, que abrigam na educação religiosa a sua distinção dos negros brasileiros. Há um rompimento cultural definitivo para com a cultura africana. Não se reconhecendo como tal, assumindo-se como ingleses, súditos da rainha e de religião anglicana (Menezes, 2010: 72).

É possível que Souza tenha decidido que os seus barbadianos fossem praticantes da religião vodu para figurá-los com um ar ainda mais misterioso e sinistro, adicionando crenças escuras e famigeradas entre o público leitor, apelando às conotações que isto terá em muitos leitores. Os barbadianos aparecem, assim, mais distantes do âmbito cultural brasileiro e podem inspirar um certo “exotismo”, fundado também na representação frequente dos cultos de vodu e dos zombies na cultura popular. A defesa do

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